Caro amigo REV25565, como tem passado?
Tenho estudado sobre um tempo
onde os pais criavam muita expectativa pela vinda de uma criança. As
progenitoras carregavam os filhos na barriga, que absurdo! Naquele tempo,
quando uma criança nascia ou era adotada, definia-se qual era o sexo pelo órgão
genital. Quando ainda na barriga da mãe, o médico fazia o ultrapassado exame de
ultrassonografia e perguntava: vocês gostariam de saber o sexo? A maioria dos
pais, não se aguentando de ansiedade, logo inquiriam: o que é doutor, menino ou
menina? O médico respondia, a partir da visualização do órgão sexual. Surreal!
Era bem complexo este modo de ser
da sociedade. Hoje é tão mais prático, as crianças são fabricadas sem sexo e
escolhem o querem ser. Basta uma pequena modificação no DNA e a troca dos órgãos
e pronto. Não tem mais este negócio de pai e mãe definido, que prendia as
crianças a um pequeno grupo social sanguíneo ou adotivo, que tinha toda a
responsabilidade sobre a criação e educação da sua prole. Ufa, imagina que
trabalho cada pessoa tinha, não deveria sobrar tempo pra nada. Descobri em
minhas leituras, que as mulheres é quem faziam praticamente todo o trabalho: cuidado
com a criança, administração da casa, trabalho secular, estudo, etc.. gente,
como conseguiam? Este pequeno grupo era a menor célula da sociedade, era chamado de família.
A fertilização dos filhos da
nação in vitro é muito mais simples. Verifiquei que tudo começou a mudar quando
o estado assumiu toda a responsabilidade sobre a educação dos filhos e definir
qual seria a ideologia que ele iria seguir. A partir deste ponto pouquíssimos
casais optaram por ter filhos. Com isto a população mundial foi envelhecendo e
desaparecendo, quase entrou em extinção. Muitas pessoas aderiram aos jogos
eletrônicos de filhos virtuais. Afinal, estes poderiam ser criados da forma que
os pais virtuais decidissem. Este jogo viralizou rapidamente, todos queriam
filhos virtuais, criados a moda antiga. Até que o jogo foi proibido por
estimular a volta do extinto conceito de família. O seu criador foi condenado à prisão solitária
perpétua. Quando as indústrias e poderosas organizações começaram a entrar em colapso devido à falta de mão de obra, tentaram estimular a sexualidade livre, pra ver se os adolescentes engravidavam, mas não deu certo. Nem mesmo eles queriam passar por este constrangimento de carregar filho para o estado. Tentaram as mães de aluguel, mas somente as viciadas é que submetiam a este vexame. Até que o Congresso achou melhor criar o Ministério de Reprodução e Controle populacional.
Lembro que quando estava no
ultimo ano da faculdade, o professor de ética pediu para pesquisarmos sobre o
conceito de família, uma vez que os alunos desconheciam completamente o que
seria isto. O assunto gerou grande polêmica e foi parar nas mãos da corregedoria
da educação do estado. O professor foi afastado por incentivar uma prática
legalmente proibida há mais de cem anos. Este fato foi parar em sua ficha única
de trabalho. Nunca mais pôde trabalhar como professor.
Ontem eu recebi um panfleto sobre
par perfeito, onde uma pessoa pode adquirir um animal adestrado para seu
companheiro ou companheira. Parece que este negócio vai bem, tenho visto a cada
dia empresas especializadas no ramo. Muitas pessoas hoje preferem ter um
relacionamento com um animal, acham eles mais carinhosos e não reclamam. Algumas pessoas tem preferido relacionar-se com plantas, porque elas não falam, e não se movem.
Não geram problemas de relacionamento. O grande problema, que tem gerado muita polêmica, é sobre as heranças. O que fazer com o patrimônio deixado para animais e plantas. O governo pensa em instituir um Ministério para cuidar especificamente deste assunto, tamanho a proporção alcançada.
Fui convidado, por meu antigo
professor, para participar de um grupo de pesquisa. Eles são considerados subversivos
e caçados pelo serviço de inteligência. Nós temos pesquisado sobre o conceito
de família antiga. A partir das descobertas montamos uma experiência interessante:
Nomeamos um homem como pai, uma mulher como mãe e os mais novos como filhos e
netos. A experiência tem sido estranha, uma vez que não entendemos direito a
dinâmica de como funcionava este grupo social. Mas, tem sido uma experiência
acolhedora. Melhor do que as terapias do governo, que só desejam nos fazer
felizes, o tempo inteiro. É interessante como a dor, a doença, as complicações
do sistema familiar antigo, aproximam as pessoas. Nós divergimos, discutimos e
até brigamos de vez enquanto, mas isto ao invés de nos separar, nos fez
conhecer um ao outro, ainda bem mais. Este evento nos fez sair da
superficialidade do relacionamento frio que conhecemos e nos deu uma razão para
viver.
Há alguns nos eu estava
totalmente depressivo. Tive que ficar um ano na fila para conseguir uma vaga
para terapia do governo. Muita gente tem morrido antes de conseguir sequer
agendar. Esta epidemia de depressão tem preocupado muito o Ministério da Saúde.
Apesar das inúmeras universidades formadoras de profissionais, a demanda é muito
grande. O número de suicídio tem aumentado dia após dia. Até mesmo entre
profissionais da área, há muitos que tiram a sua própria vida. As pessoas se
sentem vazias, apesar de terem todo o sustento do governo. Se sentem como se
não tivessem um propósito. Toda a sensação de prazer oferecida pelo serviço
social, como forma de terapia, é insuficiente para estancar a dor da alma. Eu
te confesso que este grupo familiar, tem sido bem mais benéfico pra mim do que os badalados grupos de amor. Todo aquele sexo aberto, de todas as formas, no inicio parece
preencher, mas com pouco tempo percebe-se que é apenas um paliativo. O governo
bem que tentou inovar através das terapias com animais e as chamadas crianças
objeto. No entanto me pareceu algo errado, apesar da mídia em geral anunciar
como algo bom e saudável. Eles afirmam que estas crianças são clones sem almas,
e por isto são consideradas inumanas. Porém, eu e meus amigos, do sistema único
de moradia, decidimos não participar desta forma de terapia. Se não bastasse a permissão de relacionamento consensual entre adultos e crianças como forma educativa, agora isto.
Eu li, em um dos artigos antigos, que os pais é quem orientavam os filhos em sua ideologia, e o estado só
preocupava-se em ensinar as matérias básicas. Achei confuso isto, como poderia
ser isto? Deveria ser uma confusão muito grande, cada um tendo a liberdade de
escolher a ideologia de vida que quisesse. Como eles iriam concordar ou
padronizar os comportamentos? Deveria ser muita loucura. Se hoje, todos vivendo
sobre a ideologia do governo, as coisas estão assim, imagina como deveria ser
no passado.
Este exercício de escrever cartas
é bem cansativo, mas respeito a sua decisão de não usar equipamento eletrônico
algum. Gostaria de convidá-lo para participar do nosso grupo familiar, não
precisa ser integrante permanente. Eu li que eles tinham uma categoria chamada
de primos, que somente encontravam-se de vez enquanto. Quem sabe você não gosta
do grupo e possa se tornar um primo. Mas, não comenta isto com ninguém, este
assunto é bastante perigoso e corremos o risco da reclusão permanente em
solitária, de acordo com as novas leis.
Cordialmente,
PR3287